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Mais sono e sonhos e menos celulares nas escolas

JC Notícias, 4 de fevereiro de 2025

A nova lei proíbe o uso de celulares nas escolas brasileiras, gerando debates sobre impactos na educação, tecnologia e saúde dos estudantes. Artigo de John Fontenele Araújo, professor titular da UFRN, para o portal Nossa Ciência

Caros leitores, vocês devem estar acompanhando a discussão sobre as proibições do uso de celulares nas escolas brasileiras. Primeiro, o Estado de São Paulo sancionou uma lei em dezembro de 2024 e, agora, em 13 de janeiro, o presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, sancionou a Lei n.º 15.100/2025, que proíbe o uso de celular nas escolas brasileiras no ensino fundamental. Mas você sabe o que realmente diz a lei? Quais foram os motivos que levaram o Congresso Nacional a criar essa proibição do uso de celular nas escolas? Estarão realmente nossos legisladores preocupados com a educação?

Falando sobre a lei, para o governo federal, ela busca equilibrar o uso de tecnologias digitais na educação básica e não se restringe ao uso de celular nas escolas. Ao analisar a Lei n.º 15.100/2025, vemos claramente que fica proibido o uso de aparelhos eletrônicos portáteis pessoais durante aulas, recreios e intervalos em todas as etapas da educação básica. Simplificando, fica proibido o uso de celular na escola. Todavia, a proibição não se aplica ao uso pedagógico desses dispositivos. Por exemplo, é permitido o uso de celulares em casos de necessidade, perigo ou força maior. A lei também assegura o uso desses dispositivos para fins de acessibilidade, inclusão, condições de saúde ou garantia de direitos fundamentais.

E na prática, como vai ser?

Porém, fica a dúvida: como operacionalizar isso? A criança pode levar o celular, mas não pode usar; para usar, precisa de uma autorização. O celular vai ficar na bolsa da criança? Pois os gestores escolares já disseram que não vão oferecer locais para guardar os celulares e não ficarão responsáveis pela guarda dos aparelhos.

A discussão sobre o uso de celular nas escolas está dentro de um contexto educacional do século XXI, em que a adoção da tecnologia digital resultou em muitas mudanças na educação e no aprendizado. No entanto, há uma polêmica sobre se a tecnologia digital realmente transformou a educação como muitos afirmam. A aplicação da tecnologia digital varia de acordo com a comunidade e o nível socioeconômico, com a disposição e preparo dos professores, com o nível educacional e de renda dos responsáveis pela criança ou adolescente. Com certeza, excluindo os países mais avançados tecnologicamente, computadores e dispositivos eletrônicos não são instrumentos comuns em salas de aula. Adicionalmente, as evidências são mistas, às vezes bem contraditórias, sobre seu impacto na aprendizagem.

A diretora-geral da UNESCO, Audrey Azoulay, recentemente afirmou que “a revolução digital tem um potencial imensurável, mas, assim como alertas foram emitidos sobre como ela deve ser regulamentada na sociedade, atenção semelhante deve ser dada à maneira como ela é usada na educação”. Em 2023, um Relatório de Monitoramento Global da Educação da UNESCO lançou um apelo para que a tecnologia seja usada apenas em sala de aula quando apoiar os resultados da aprendizagem, o que inclui o uso de telefones celulares.

Distração

Um estudo realizado em 14 países com crianças e jovens mostrou que o uso de celular promove distração dos alunos, prejudicando o aprendizado. Adicionalmente, demonstrou que, mesmo ter um celular por perto, com notificações chegando, já é o suficiente para fazer com que os alunos percam a atenção nas tarefas educacionais. Além disso, dados mostram que, após a remoção de smartphones das escolas na Bélgica, Espanha e Reino Unido, houve uma melhora nos resultados de aprendizagem, especialmente para estudantes que não estavam tendo um bom desempenho, conforme um estudo citado no relatório da UNESCO.

A discussão internacionalmente não tem se restringido à proibição do uso de celular, mas também a outras ações direcionadas a alguns aplicativos. Por exemplo, alguns países proibiram o uso de certos aplicativos específicos em ambientes educacionais devido a preocupações com a privacidade. Dinamarca e França proibiram o Google Workspace, enquanto a Alemanha proibiu produtos da Microsoft em alguns estados. Nos Estados Unidos, algumas escolas e universidades começaram a proibir o TikTok.

Desigualdade econômica

Um argumento contra a proibição do uso de celular é que, para os países subdesenvolvidos e com ampla desigualdade econômica, como o Brasil, o celular é o único instrumento tecnológico com acesso à internet para os mais desfavorecidos. A proibição do celular retiraria a única oportunidade de se beneficiar do uso de novas tecnologias na sala de aula. Os custos de curto e longo prazo do uso da tecnologia digital parecem ter sido significativamente subestimados pelos legisladores que aprovaram as leis que proíbem o uso de celular nas escolas.

É claro que consideramos legítima a preocupação dos professores e legisladores, principalmente sobre a relação entre o uso do celular e a saúde mental. Os celulares são uma fonte significativa de distração dos estudantes. O uso pode diminuir as interações sociais e, adicionalmente, não podemos esquecer que o uso de celulares por crianças pode ser um meio para registrar e compartilhar informações sem consentimento. Para os defensores da proibição, espera-se que ocorra uma melhoria no desempenho acadêmico e um fortalecimento das habilidades sociais.

No entanto, esses impactos são duvidosos e, por isso, faz-se necessário um amplo debate, reconhecendo que o alto sofrimento psíquico dos estudantes decorre de uma complexidade de fatores intrínsecos à escola e externos a ela, alguns dos quais apresentam uma interdependência entre organização escolar e social. Por isso, defendemos que as políticas públicas para educação sejam baseadas em conhecimentos científicos.

Por exemplo, existem inúmeras evidências de que o sono é um processo fisiológico fundamental para que ocorra uma aprendizagem eficiente. Hoje, sabemos que o sono é uma função biológica essencial para a saúde e o bem-estar humanos. O sono não é apenas uma fase de descanso para o corpo, mas um fenômeno ativo e heterogêneo. Durante o sono, ocorrem diversos eventos neurais que desempenham um papel fundamental na manutenção do nosso equilíbrio físico, mental e emocional, além de contribuir para a restauração física, a consolidação da memória, a regulação emocional e a manutenção da saúde metabólica, imunológica e cardiovascular.

Déficit cognitivo

Tanto em experimentos com modelos animais quanto em humanos, a privação de sono total ou parcial provoca um déficit em testes cognitivos. Por isso, queremos chamar a atenção de gestores, diretores, pais, estudantes e legisladores sobre a importância do sono no contexto da educação brasileira.

Uma evidência importante é a grande quantidade de estudantes sonolentos durante as aulas. Gosto sempre de dizer que uma criança dormindo em sala de aula é um problema sério, pois isso não deve ser decorrente da falta de motivação do professor. Quando uma criança não está motivada para a aula, ela não dorme como os adultos; naturalmente, ela bagunça. Essa criança está sonolenta porque a escola está lhe roubando o sono diurno. Cochilos durante o dia são naturais para os menores de 10 anos.

Outra evidência experimental interessante tem sido a demonstração de que permitir que as crianças do ensino fundamental possam dormir em determinado momento na escola promove uma melhora na aprendizagem. Na UFRN, o professor Sidarta Ribeiro está atualmente desenvolvendo um projeto de pesquisa chamado “Soneca Escolar”. Esse projeto está sendo executado pela mestranda em neurociências Flora Assaf, do Instituto do Cérebro (ICe-UFRN). Na última pesquisa realizada pelo laboratório de Sidarta, crianças do 1.º ano do ensino fundamental que participaram do protocolo e puderam tirar uma soneca na escola dobraram sua velocidade de leitura. Agora, a pesquisa quer levar essa melhoria às escolas do Rio Grande do Norte.

Horário para o início das aulas

Nos Estados Unidos, a Academia Americana de Pediatria, a Associação Médica Americana e o Centro Nacional de Prevenção de Doenças Crônicas e Promoção da Saúde propõem que as aulas não comecem antes das 8h30. Em vários estados norte-americanos já existem leis que regulam sobre o horário de início das atividades escolares. É importante enfatizar que isto se torna mais necessário para os adolescentes, pois é nesta fase que ocorrem mudanças no ciclo sono-vigília, quando os estudantes passam a ter uma maior dificuldade para antecipar o horário de início do sono noturno.

Adicionalmente, temos os estímulos luminosos decorrente do uso aparelhos eletrônicos como telefones celulares, além da autonomia para determinar seu horário de sono. No Brasil, com a nossa participação, a Associação Brasileira do Sono elaborou um dossiê sobre “Horários Escolares e Implicações no Sono de Adolescentes” em que apresentamos um conjunto de orientações para gestores educacionais, professores, estudantes e pais.

Consideramos que o fundamental para termos mudarmos a realidade da educação básica e do ensino médio no Brasil é preciso agirmos em várias frentes. Por exemplo, é preciso garantir melhores condições para que as nossas crianças e os nossos jovens tenham um ambiente educacional, tanto em sua dimensão espacial quanto temporal adequados para atual realidade. Que as escolas que sejam ambientes agradáveis, bonitos livres e cheia de professores e funcionários com bons salários. As decisões sobre como a escola deve funcionar deve ser decidida através de um diálogo entre estudantes, professores, pais e gestores escolares. Precisamos construir a nossa democracia dentro da escola e que o diálogo seja realmente parte do processo de formação do cidadão. Meu desejo é que as escolas sejam uma “ESCOLA COM MAIS SONO e SONHO E MENOS CELULARES”.

Sobre o autor:

John Fontenele Araújo é professor titular do Departamento de Fisiologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicobiologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte

Originalmente publicado no portal Nossa Ciência em duas partes:

Parte 1: https://nossaciencia.com/artigos/mais-sono-e-sonhos-e-menos-celulares-nas-escolas/

Parte 2:https://nossaciencia.com/artigos/mais-sono-e-menos-celulares-das-escolas-parte-2/

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