Benigna Villas Boas

A formação de professores na universidade laica

Jornal da Ciência, 13/09/2017

A formação de professores na universidade laica

Artigo de Luiz Antônio Cunha, professor da UFRJ e coordenador do Grupo de Trabalho Estado Laico da SBPC

Neste mês de setembro o Supremo Tribunal Federal deve decidir sobre a Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.439, que trata sobre o ensino religioso nas escolas públicas: confessional ou não confessional, além de questões correlatas arguídas pela Procuradoria Geral da República. Entre elas está a diretriz da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, que qualificou o ensino religioso nas escolas públicas como “parte integrante da formação básica do cidadão”, apesar de ser disciplina facultativa. Aí está mais uma razão para lembrar da mesa redonda sobre “A formação de professores na universidade laica”, realizada durante a 69ª Reunião Anual da SBPC, em Belo Horizonte, há dois meses.

Coordenada pelo professor da UFMG José Raimundo Maia Neto, a mesa foi composta pelos professores Carlos Roberto Jamil Cury da UFMG e da PUC-Minas (recém-eleito vice-presidente da SBPC), Lygia Segala da UFF, e Luís Fernando Dorvillé da UERJ.

Pesquisador de Direito Educacional, e com longa experiência de membro do Conselho Nacional de Educação, Cury partiu da formulação de que a universidade não é o lugar do dogma. A circulação do saber crítico deve prevalecer nela sobre toda crença que se pretenda impor como uma verdade absoluta. Não se contentando com esse axioma, ele fez um rastreamento da legislação educacional brasileira e mostrou que a laicidade é um componente essencial da formação de professores, tanto nas instituições públicas quanto nas privadas, umas e outras autorizadas a funcionar pelo Estado, sem o que os diplomas expedidos não têm valor legal. As instituições privadas, mesmo as confessionais, não estão isentas do caráter laico na formação de professores. O que difere as públicas das privadas são as entidades mantenedoras de cada uma delas. É o governo federal, os estaduais e os municipais que mantêm as instituições públicas de ensino, enquanto que as privadas podem ser mantidas por entidades confessionais, as quais podem oferecer nos seus cursos de licenciatura disciplinas e outras atividades de cultura religiosa ou de história das doutrinas religiosas. No entanto, Cury mostrou que os termos empregados pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, ao tratar das finalidades do ensino e da formação docente, emprega termos que estão sintonizados com a ciência. Para a LDB, a formação docente deve se pautar pelos fundamentos científicos, deve considerar o desenvolvimento do espírito científico e assim poder assumir o domínio dos conhecimentos científicos. Em síntese, a legislação brasileira estabelece que a formação de professores deve ser pautar pela laicidade.

Luís Fernando Dorvillé e Lygia Segala, por sua vez, focalizaram os cursos de licenciatura em universidades públicas, partindo de pontos de vista distintos, mas complementares. Eles identificaram nesses cursos problemas graves envolvendo as crenças religiosas de estudantes e professores.

Biólogo de formação, Dorvillé leciona em universidade estadual para licenciandos em Ciências Biológicas, muitos deles adeptos de religiões evangélicas pentecostais, que fazem uma interpretação literal da Bíblia, portanto rejeitam a teoria da evolução da evolução das espécies pela seleção natural, em proveito do criacionismo. Mesmo quando mostram entender a explanação teórica e respondem corretamente às questões de prova, tais estudantes mostram-se resistentes à teoria de Darwin, eixo interpretativo da Biologia contemporânea. Para enfrentar esse problema, Dorvillé sugeriu que os professores abandonem o objetivo inatingível de vencer as crenças religiosas dos estudantes e deixem de tratar a ciência como um conjunto de verdades absolutas, viés bastante comum na educação básica e até na superior. A solução proposta por ele é apresentar a atividade científica como uma atividade sistemática de problematização e descobertas, sempre parciais. Essa provisoriedade não autoriza o professor a apresentar as formulações científicas como verdades absolutas. Ao contrário, o diálogo com outros saberes, numa perspectiva intercultural, pode fortalecer a perspectiva científica ao invés de enfraquecê-la.

Antropóloga de formação, Lygia Segala apresentou uma reflexão a partir de sua própria atividade docente, a partir da qual observou a atitude de docentes de cursos de licenciatura diante dos estudantes religiosos, que trazem suas crenças e práticas para o ambiente universitário. Diante deles, uns professores assumem posições religiosas, por convicção; outros se contrapõem a elas, acusando-as de mistificadoras. A escuta da antropóloga revelou que os jovens se ressentem da acusação dos docentes, que tratam suas crenças como irrelevantes e até mesmo danosas para a vida acadêmica. Para ela, nenhuma dessas posições é conveniente para os cursos de formação de professores na universidade pública, que não é lugar de disseminação de crenças religiosas, tampouco de seu combate. A posição da expositora foi de defender o diálogo entre professores e estudantes, enfrentando a questão da laicidade e do confessionalismo, cujas fronteiras não estão dadas, ou seja, impõe-se revisitar teórica e politicamente tais limites.

Na avaliação das apresentações e da discussão que se seguiu entre os componentes da mesa e os assistentes, o coordenador, professor de Filosofia José Raimundo Maia Neto chamou a atenção para o fato de que pelo menos parte dos conflitos apontados pela mesa redonda reside no âmago das próprias universidades, particularmente nos cursos de formação de professores. A grande ampliação do ensino superior, ocorrida nos últimos anos, derivada da maior escolarização no ensino médio e das políticas expansivas e inclusivas dos governos Lula e Dilma nesta área, trouxeram para as universidades um grande número de estudantes com um perfil religioso menos secularizado e mais religioso fundamentalista. O ensino superior laico impacta sua visão de mundo, mas nem sempre é capaz de alterá-la de forma significativa.

Ao refletir sobre a contribuição dessa instigante mesa-redonda, veio-me a nítida impressão de que é preciso interromper um processo reprodutivo perverso: professores formados em nível superior passando incólumes por professores que não sabem como lidar com suas visões de mundo religiosas fundamentalistas, tendem a reproduzir no nível fundamental e no nível médio suas atitudes adversas para com o pensamento racional e a ciência. Pensei, também, que, na escola e na universidade o livro didático não pode ser considerado inquestionável ou sagrado, não pode ser apresentado como o depositário do conhecimento pronto e acabado. Ele não é o fim das indagações, ele é (apenas?) um instrumento muito útil para o acesso a informações e a indagações. Do mesmo modo, a palavra do professor não pode ser entendida como a de um profeta, mas de um “parteiro” do processo de acesso ao conhecimento, como na feliz imagem de Sócrates, apresentada há 24 séculos. Existem religiões que têm livros sagrados. Segundo seus adeptos, eles contêm a verdade ditada por uma entidade sobrenatural. Na escola e na universidade não pode existir livro com tais características. É preciso que os professores e os alunos se lembrem, o tempo todo, de que o conhecimento é historicamente produzido. O que hoje é aceito como a última palavra, pode ser superado amanhã. Assim, a preparação dos alunos tem de ser feita na perspectiva da mudança da ciência, da cultura e da tecnologia. E se isso não for feito desde o início da escolarização, vai ser difícil reverter a disposição em aceitar fórmulas prontas. Nesse aspecto, a perspectiva laica da escola e da universidade coincide com o que há de melhor na pedagogia contemporânea.

 

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