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A política zumbi do MEC

Publicado em 05/06/2023 por Luiz Carlos de Freitas, no blog do Freitas

O MEC está sendo ocupado por políticas zumbis[1] que cresceram na época neoliberal e que agora estão em seu ocaso com as dificuldades do neoliberalismo. No entanto, elas esvaziaram o Estado e deixaram um legado difícil. Cédric Durand chama o Estado resultante das reformas neoliberais de Estado oco ou frágil.[2]

Ele  examina as dificuldades deste Estado para retomar seu papel de indutor de políticas públicas (no caso as industriais) em um quadro de neo-industrialização que coloca em cena um Estado mais ativo e não mínimo e direcionado apenas a apoiar o empresariado. Algumas das dificuldades ali apontadas por ele são um alerta também para as políticas educacionais. O autor aponta que a criação de um Estado frágil se deveu à crença de que seria suficiente induzir competição para produzir qualidade.

É notório que esta visão penetrou também na política educacional dos últimos 40 anos em vários países, inclusive no Brasil, com a reforma empresarial na educação, em ondas sucessivas de pressão sobre as escolas a partir de metas, avaliação censitária de escolas e meritocracia regada a premiações de vários tipos (bônus, prêmios nacionais etc.), ou seja, mais dinheiro focalizado em quem atingia metas cada vez mais exigentes e competitivas.

A criação de um Estado fragilizado pela crença na supremacia da competição, que na opinião de Durand esvaziou o Estado, pode ser notada no nosso Ministério da Educação (especialmente depois do vendaval bolsonarista) e teve repercussões na política educacional.

Analisando a questão do Estado, em sentido mais amplo, Durand cita Brien Deese para resumir uma das dificuldades atuais: “O problema se resume ao profissionalismo do serviço público em nível federal e nos níveis estadual e local – muitos dos quais foram esvaziados.”

A nosso ver, o campo da educação é um bom exemplo, pois padece da invasão de “gestores profissionais”, de empresários ou de “políticos com experiência de gestão” sem conhecimento algum da área educacional, fato notório e que tem raízes muito antigas, agravadas pela lógica da competição. Profissionais com longa experiência nos assuntos especificamente educacionais envolvendo a ciência pedagógica são considerados “muito ideológicos” e portadores de um “pedagogês” improdutivo.

Esta situação é visível no cenário nacional já nos anos 1990, aprofundada com a implantação do IDEB e da avaliação censitária e ganha proporções maiores com a generalização da reforma educacional cearense, com o FUNDEB meritocrático e pode ser observada em vários Estados brasileiros, como por exemplo no Paraná, onde se implantou políticas de competição na rede estadual a ponto de determinar a troca dos diretores que não atingem metas nas suas escolas. Uma destruição sem precedentes. Competição e pressão sempre andam juntas.

Outra consequência destas políticas neoliberais é que centrando em soluções fracassadas que são na realidade “políticas zumbis” que nos últimos 40 anos nem dão certo e nem saem de cena, os problemas foram se tornando cada vez mais graves e agora as ações governamentais têm dificuldades para conseguir equacioná-las e financiá-las – inclusive porque ao longo destes 50 anos de política econômica neoliberal a crise do capital agravou-se. Mas estas políticas continuam perambulando de várias formas.

Quando se entrevistou G. W. Bush, ex-presidente dos Estados Unidos, e se indagou dele a que atribuía o fracasso de sua política educacional baseada em “accountability”, a qual responsabilizava as escolas pelo atingimento de metas medidas por avaliação dos estudantes em testes e que estipulavam consequências como as que estão implantadas no Paraná, chegando até o fechamento e privatização de escolas, ele respondeu: “faltou mais accountability ainda”.

É isso que significa uma “política zumbi”: elas não dão certo e nunca morrem, elas não têm capacidade de autocrítica e perambulam dizendo que a dosagem do remédio foi pequena ou administrada erradamente. Mas há ainda outra estratégia zumbi pelas quais estas políticas continuam ressucitando.

Consiste em argumentar que a política educacional neoliberal teve problemas devido a consequências fortes que se seguiram às avaliações e que, modificadas tais consequências, elas funcionarão melhor. Consiste ainda em ocultar algumas das consequências e finalidades mais duras desta política como seu desdobramento no uso de vouchers para induzir a privatização. Mantém-se todo o quadro de pressão via metas, avaliação censitária e meritocracia e muda-se a intensidade das consequências e ocultam-se seus desdobramentos, de forma a que levantem menos bandeiras vermelhas. As fundações e institutos privados, bem como a academia deles dependente, de forma conscientemente ou não, são mestres nesta prestidigitação “baseada em evidências” escolhidas por eles mesmos.

O caminho do abrandamento das consequências foi tentado por Obama nos Estados Unidos, depois de 2015. Como a lei implantada por Bush não funcionou, Obama deu “perdão” aos Estados, pois não puderam atingir as metas estipuladas para serem atingidas em 14 anos, e implantou uma lei mais branda, induzindo os Estados a aceitá-la em troca do “perdão” e, claro, de dinheiro federal. Incluiu-se no pacote o Common Core, uma espécie de base nacional comum para inglês e matemática. Novo fracasso.

Nos países centrais estas políticas neoliberais estão, juntamente com a própria economia neoliberal[3], em crise. Mas suas políticas continuam vagando mundo afora como zumbis, mais ainda em um país semiperiférico como o Brasil, e são alimentadas pelos seus agentes principais: institutos, ONGs e fundações privadas com ou sem fins lucrativos.

Esta política está no Ministério da Educação, na versão Ceará, agora mais intensamente ainda. Com ela, usaremos um momento em que o Estado pode voltar a ser um articulador de políticas sociais progressistas, preenchendo o vazio neoliberal deixado, e vamos acomodar políticas zumbis, dando fôlego à competição e ao individualismo, com a expectativa de que produzam resultados rápidos. Com isso, ficam intactas as finalidades educativas da política neoliberal presentes nas bases nacionais curriculares, bem como sua lógica de indução, enquanto as reformulações de fundo na educação vão sendo postergadas.

E a escolha desta política, é bom que se diga, foi opção de governo e não produto de pressão derivada de visões educacionais diferentes naturalmente existentes em um governo de frente ampla.


[1] Zumbi ou zombie é uma criatura cujo estereótipo se define, nos livros e na cultura popular, como um cadáver reanimado usualmente de hábitos noturnos, que vive a perambular e a agir de forma estranha e instintiva; um morto-vivo; um ser privado de vontade própria, sem personalidade. Os zumbis são mais comumente encontrados em obras do gênero de terror e fantasia (Wikipédia).

[2] Durand, C. (2023) Estados ocos  em face do “neoindustrialismo”. Disponível em https://eleuterioprado.blog/2023/06/04/estados-frageis-em-face-de-um-neoindustrialismo/#more-4901 Acessado em 5/6/23.

[3] Gerstle, G. (2022) The rise and fall of the neoliberal order: America and the world in the free market era. New York: Oxford University Press.

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