Avaliação escolar nos anos 1940: o julgamento do estudante como foco

Benigna Maria de Freitas Villas Boas

Concluída a pesquisa Avaliação das aprendizagens em livros: 1960 a 2020, por integrantes do GEPA, da qual resultou o livro com o mesmo título, interessei-me em buscar informações sobre o tema em livros anteriores à década de 1960. Como é fascinante encontrar as concepções e as práticas dessa categoria do trabalho pedagógico em obras publicadas há muitas décadas! Cheguei à obra Manual de pedagogia moderna, de autoria de Everardo Backheuser, em sua quarta impressão, da segunda edição, datada de 1948. A primeira edição é de 1942. Depois vieram as de 1948, 1954 e 1958, o que parece indicar grande procura pela obra.

Manual de pedagogia moderna é indicado para uso das Escolas Normais e Institutos de Educação. Em 409 páginas, os temas, distribuídos em capítulos, são os seguintes: conceito de educação e pedagogia; ciências basilares da pedagogia; fatores da educação; os educadores e a educação; princípios cardeais da Escola Nova e problemas de pedagogia prática. O último capítulo, em 20 páginas, trata do “julgamento e seleção dos alunos”. Aqui discutem-se: critérios de julgamento; processos subjetivos e objetivos; confecção, aplicação e apuração dos testes; objeções ao valor dos testes; escolha do critério de julgamento; testes e seus mecanismos; seleção.

Antes mesmo da leitura do capítulo, percebem-se as palavras-chave: julgamento, testes e seleção. De fato, elas norteiam toda a argumentação. Este é o capítulo específico sobre avaliação, embora esta palavra não seja usada.

Para que se compreenda o processo avaliativo (esta expressão não é usada) descrito pelo autor, torna-se necessária a análise do capítulo anterior, intitulado “Da organização das classes”, que aponta pistas sobre esse processo.

A organização das classes é feita em busca da sua homogeneização, para que se resolvam os problemas correspondentes ao nível de conhecimento dos alunos. Pelo critério pedagógico, eles são agrupados segundo seu adiantamento. São criadas classes de “adiantados” e de “atrasados”, ou de “adiantados”, de “médios” e de “atrasados”, nas quais “se congregam as crianças que no ano anterior obtiveram notas de aprovação aproximadamente iguais” (Backheuser, 1948, p. 373). Para isso podem ser usadas notas de aprovação ou também a idade cronológica do aluno na data da prova.

O autor argumenta não ser uma boa prática pedagógica reunir em uma mesma classe alunos repetentes e promovidos. No entanto, “mesmo que o número de repetentes fosse suficiente para organizar, só para eles, uma turma, ainda assim não estaria resolvida a questão, porque uma turma de repetentes continuaria  a ser inomogênea” (Idem, p. 383).  (não homogênea), já que há várias causas para a repetência.   

A organização das classes se complica quando há alunos repetentes, diz o autor, por serem desinteressados, desatentos, vadios, insubmissos e foco de desordem. “São, portanto, elementos perturbadores e maus exemplos. Quando pouco inteligentes e apáticos, requerem do mestre maior atenção para eles, o que tudo redunda em efetivo prejuízo para o aluno médio, que é o grosso da turma” (Ibidem, p. 383).

Também as classes de reajustamento constituem objeto de reflexão, porque nelas o aluno está “em tratamento”, para “correção de deficiências e falhas” (P. 384). Estas classes assemelham-se a “classes de débeis” (p. 384). Contudo, elas também se encarregam do ensino dos “supernormais” (Ibidem, p. 384).

Backheuser conclui que os grandes desníveis entre alunos de uma mesma turma são prejudiciais “tanto aos superiores quanto aos colocados em níveis baixos” (Ibidem, p. 385). Nas classes homogêneas, “mestres e alunos se sentem à vontade” … “e com isso se satisfaz o professor” (Ibidem, p. 385).  

Até aqui podemos observar a forte e cruel presença da avaliação informal que desabona e vitimiza o aluno que ainda não aprendeu o que se espera dele, que necessita de todo tipo de apoio. O julgamento dos alunos repetentes por meio de palavras como: desinteressados, desatentos, vadios, insubmissos, foco de desordem, elementos perturbadores e maus exemplos demonstra o desprezo com que eram tratados. Com o passar do tempo passamos a admitir que a existência de turmas especiais para os reprovados e os que se encontram com baixos níveis de aprendizagem cria oportunidades de eles serem marginalizados, ridicularizados pelos colegas e até desacreditados pelos professores.   

O capítulo sobre julgamento e seleção dos alunos dá continuidade ao que seria o processo avaliativo desenvolvido na década em questão. O contato permanente entre professores e alunos possibilita a formulação de julgamento, entendido como a “somação de prolongadas observações que o professor procura fixar, ou simplesmente as armazenando na memória, ou as anotando em fichários, ou cadernos …” (Ibidem, p. 388). Essas observações se referem à constituição física e estado de higidez do colegial até as relacionadas ao seu caráter e formação moral. Além desses aspectos, incluem-se: inteligência, funções psíquicas, de aplicação e conduta e as de conquista de conhecimentos. Em resumo, “tudo o que se refira ao estudante como estudante”. Atualmente os estudiosos consideram perigosa a intenção de avaliar o estudante com um todo. Afinal de contas, o que cabe ao professor e à escola avaliarem?

Nesse capítulo o autor esclarece que o Manual se ocupa de “problemas pedagógicos” (Ibidem, p. 389). Por isso, os critérios de julgamento dizem respeito “aos processos usados para aquilatar dos conhecimentos dos alunos para fins de promoção” (Ibidem, p. 389). Organizam-se em dois grupos: o subjetivo e o objetivo. O primeiro compreende a opinião do professor e o julgamento por outro professor ou por outros (banca examinadora).

Como os processos subjetivos não são isentos de imparcialidade, as bancas examinadoras são mais indicadas, conforme o manual. Isso porque a severidade de um dos componentes é contrabalançada pela suavidade do outro, o que acaba gerando uma média equilibrada (Ibidem, p. 390). Contudo, o autor pondera que pode haver disparidade de julgamento de várias bancas examinadoras, de modo que alunos retidos por uma delas poderiam obter sucesso em outras.  

Um dos fatores negativos do exame, de acordo com o autor, é a solenidade do ato, podendo, como decorrência, causar inibições e insucessos. Embora ele relate o que parece ter sido comum à época, ao mesmo tempo introduz a ressalva de que os pedagogos já condenavam o julgamento por exame, parecendo indicar que havia discussão sobre o tema.

Além do exame propriamente dito, revestido de grande aparato, e o julgamento pelo professor, é acrescida uma terceira hipótese: “a verificação do saber do aluno em ambiente normal ou quase normal na classe, sem vislumbre de solenidade, por um outro professor que não o da turma (Ibidem, p. 391). Assim se estabeleceria o controle das notas dadas pelo professor da turma.

Ao final da sua argumentação, Backheuser afirma que o julgamento somente pelo professor, quando criterioso e honesto, é o preferível entre os processos subjetivos. É econômico e se realiza rapidamente.

Diferentemente dos processos subjetivos, os objetivos não são apoiados em opiniões e em estimativas. Compõem-se de provas de resposta única ou de testes. O julgamento de cada questão é “preciso, rigoroso, insofismável” (Ibidem, p. 393).

Ao final do capítulo, o autor discorre sobre os resultados do que denomina de “uma eloquente pesquisa”, por ele realizada em 1936 (Ibidem, p. 399). Foi feita a comparação do valor relativo do julgamento de alunos: a) pela opinião somente do professor; b) pela opinião de um outro professor; c) pelo processo de testes de escolaridade, por meio da aplicação de testes a 120.000 alunos, ou seja, a todos os do sistema educacional do Distrito Federal (à época localizado no Rio de Janeiro).

Cada professor emitiu parecer sobre seus alunos, definindo cada um como “promovível” ou “impromovível”. Em seguida, cada um foi examinado por outro docente de outra escola, que não teve acesso ao julgamento do professor da turma. Como última etapa da pesquisa, os alunos foram submetidos a testes. Os resultados da investigação foram os seguintes: a) o julgamento do professor da classe, salvo para a primeira série, é sempre mais benevolente; b) o julgamento do professor estranho à classe é o mais severo; c) o julgamento resultante do teste ocupa sempre um termo médio entre os dois julgamentos subjetivos (P. 400).

O autor encontrou como resultado prático : “a) os alunos condenados pelo professor são realmente maus e sem direito à promoção, não sendo, em consequência, necessário sujeitá-los a qualquer prova, teste ou exame; b) os alunos aprovados pelo segundo professor teriam incontestável direito à promoção, também independente de qualquer outra verificação; c) o julgamento por teste equivale à média dos julgamentos dos dois professores nas condições especiais acima indicadas, que, em consequência, a esse duplo critério (de dois professores na condições indicadas) podem sem grande erro recorrer os sistemas escolares com parcos recursos financeiros para manter um aparelho central de organização, aplicação e apuração de testes” (P. 400).  

Cabe destacar que, embora, o livro de Backheuser date de 1948, a pesquisa por ele descrita foi desenvolvida em 1936.  

Notas finais

No texto analisado observa-se a forte presença da avaliação informal por meio de rótulos depreciativos da pessoa do estudante, que talvez tenham influenciado o desenvolvimento da modalidade formal. Freitas nos ajuda a compreender esse processo: “no plano da avaliação informal, estão os juízos de valor invisíveis e que acabam por influenciar os resultados das avaliações finais e são construídos pelos professores e alunos nas interações diárias” (2009, p. 27). Adverte este autor: esta é a parte mais dramática da avaliação. A tendência é os professores tratarem os alunos segundo os juízos que constroem sobre eles.

O processo avaliativo na escola vem passando por um longo percurso: desde o seu entendimento como julgamento, seleção e punição, a crença na centralidade da nota e de o professor ser o que tudo determina até o reconhecimento, nos dias atuais, de que a avaliação formativa é inegociável, por ter como foco a conquista das aprendizagens por todos os estudantes. O caminho ainda precisa ser desbravado no sentido de a avaliação ser reconhecida como meio de assegurar as aprendizagens de todos.

Referências

BACKHEUSER, Everardo. Manual de pedagogia moderna. Rio de Janeiro: Editora Globo, 1948.

FREITAS, Luiz Carlos de et al. Avaliação educacional: caminhando pela contramão. RJ, Petrópolis: Vozes, 2009.