Coronavírus pode aumentar desigualdade entre pesquisadores

JC Notícias – 20/07/2020

Dificuldades acentuadas pela pandemia afetam mais as mulheres e podem representar um retrocesso dos esforços que vêm sendo feitos para aumentar a participação delas na ciência, diz pesquisadora da UnB

No momento em que o Brasil mais precisa da ciência, para enfrentar os efeitos da pandemia do coronavírus, a pesquisa científica sofre a perda de recursos orçamentários, o que impacta diretamente na qualidade da infraestrutura de laboratórios e equipamentos. Somado a isso, o necessário isolamento social está afetando negativamente a vida e o trabalho dos pesquisadores. Por outro lado, uma nova forma de fazer ciência, baseada no compartilhamento de conhecimentos, está crescendo entre os jovens cientistas.

O cenário foi descrito pelos expositores do debate virtual promovido pela Academia Brasileira de Ciências (ABC), no dia 7 de julho, dentro da série “O mundo a partir do coronavírus”, com o tema “O Impacto da Pandemina na Pesquisa Científica”.

O evento teve como expositores o presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), Ildeu de Castro Moreira, e dois pesquisadores – Jaqueline Mesquita, professora do Departamento de Matemática da Universidade de Brasília (UnB), e Marcelo Mori, chefe do Departamento de Bioquímica e Biologia Tecidual da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). A mediação ficou a cargo da cientista Helena Nader, vice-presidente da ABC e presidente de honra da SBPC.

Mulheres mais afetadas

O ano de 2020 dos pesquisadores tem sido marcado pela sobrecarga de trabalho, laboratórios fechados e falta de recursos (equipamentos, insumos). A esse quadro se somam a falta de condições familiares, com creches e escolas fechadas, acentuando, além de tudo, a desigualdade de gênero. As mulheres são as maiores prejudicadas, especialmente as que têm filhos, relatou Jaqueline Mesquita.

Dados do movimento Parent in Science sobre a produtividade acadêmica durante a pandemia, apresentados por Mesquita, mostram que, entre os docentes, apenas 18,3% dos homens e 8% das mulheres estão conseguindo trabalhar remotamente. Entre os discentes de pós-graduação, 82% responderam que não estão conseguindo trabalhar remotamente e entre os que conseguem, 36,4% são homens e 27% mulheres. “Novamente, analisando a questão da parentalidade, vemos que as mulheres com filhos são as mais afetadas”, disse Mesquita.

A pesquisa foi realizada com mais de 14 mil cientistas, entre discentes de pós-graduação, pós-doutorado e docentes/pesquisadores nos meses de abril e maio. Do total dos que conseguem trabalhar em casa, 68,7% dos homens e 49,8% das mulheres conseguiram apresentar artigos acadêmicos no período conforme planejado. “Os números são muito baixos”, afirma Mesquita, e ficam ainda menores quando se trata de homens e mulheres com filhos, especialmente aqueles tutores de crianças abaixo de seis anos.

“A pandemia afeta os pesquisadores de formas diferentes”, comentou Mesquita em entrevista ao Jornal da Ciência por telefone posteriormente, já que sua apresentação no webnário foi interrompida devido a um apagão de energia elétrica que atingiu Brasília naquele dia. Para ela, as dificuldades podem agravar a desigualdade de gênero e representar um retrocesso dos esforços que vêm sendo feitos para aumentar a participação de mulheres na ciência.

A pesquisadora da UnB também apresentou evidências de uma possível nova onda de “fuga de cérebros” – pesquisadores que deixam o país para estudar e desenvolver seus trabalhos no exterior – devido à crise e aos cortes das bolsas de estudos e fomento à ciência. Tomando por base informações que ela acompanha mais de perto, das universidades de São Paulo e de Brasília (USP e UnB), Mesquita mostrou que nos últimos dois a três anos são crescentes os pedidos de licença para interesses particulares e exonerações.

Embora os dados não sejam conclusivos, para ela são indicativos de aumento do número de pesquisadores que estão deixando o Brasil, especialmente se comparados com o número – também em alta – de profissionais qualificados que estão pedindo vistos nos Estados Unidos. “Seria necessário pensar em políticas para amenizar essa situação e incentivar os pesquisadores brasileiros a permanecerem no país”, afirmou.

Compartilhamento

Marcelo Mori, da Unicamp, que estuda a área de envelhecimento humano, relatou sobre as mudanças que estão ocorrendo nas relações entre os jovens cientistas, com abordagens criativas e interdisciplinares para o enfrentamento da crise da pandemia do coronavírus e da falta de recursos para a pesquisa.

“A palavra-chave é compartilhamento”, disse Mori, acrescentando que os pesquisadores dividem ideias, equipamentos, autoria de estudos e artigos acadêmicos, em um esforço para avançar a ciência além de questões de vaidade.

Mori defendeu a expansão da interdisciplinaridade e o que ele chamou “ciência por empatia”, marcada pela solidariedade com os problemas que afetam os mais vulneráveis, que têm se intensificado com a mobilização dos cientistas de todo mundo diante da pandemia.

Desafios

Para o presidente da SBPC, Ildeu de Castro Moreira, os dados apresentados por Mesquita e Mori são preocupantes e comprovam que o Brasil tem uma luta pela frente para reverter a degradação das condições a que chegou a pesquisa científica brasileira. Ele ressaltou a necessidade de maior interação da ciência com a indústria e de um esforço no sentido de melhorar a posição do País no índice global de inovação. “Temos um descompasso entre a ciência produzida e o potencial que ela tem de impactar a sociedade, seja no sistema produtivo, seja nas políticas públicas”, disse Moreira.

O presidente da SBPC chamou a atenção ainda para a urgência de aumentar a conexão com a sociedade, e um dos pontos centrais é a melhoria da educação básica, um desafio no qual as universidades devem ajudar mais do que já fazem. “Acho que temos que fazer um esforço nacional para melhorar a educação em todos os níveis, em particular a educação em ciências, o que é uma responsabilidade de todas as instituições públicas”, declarou.

O vídeo com a íntegra do debate está disponível na página da ABC no Facebook: https://www.facebook.com/abciencias/videos/576885853201557

Jornal da Ciência

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