Da recuperação da aprendizagem à intervenção pedagógica

Realizando pesquisa sobre a recuperação da aprendizagem, em diversas épocas, encontrei informações que merecem reflexão. Essa expressão faz parte do contexto da avaliação da aprendizagem. No livro Didática Geral, de Fontoura (1964, 4ª ed.), escrito em 527 páginas e organizado em 26 capítulos, os dois últimos dedicam-se ao que o autor chama de verificação e retificação da aprendizagem. A verificação serve para “medir o aluno, o professor, o método, a escola, e até o sistema educacional” (Idem, p. 497). Permite a realização da retificação da aprendizagem, cujo propósito é “refazer o ensino, quando o aluno não aprendeu corretamente … com a maior brevidade possível” (Ibidem, p. 501, 502). O autor não explicita se todos os estudantes teriam direito a essa ação. Parece estar aqui implícita a ideia de recuperação da aprendizagem.   

Das 506 páginas do livro Sumário de Didática Geral, nas duas últimas unidades, Mattos (1967, 7ª ed.) discorre sobre a diagnose, a retificação, a verificação da aprendizagem e a avaliação do rendimento escolar. A “solução racional” (Ibidem, p. 433) para o enfrentamento das dificuldades de aprendizagens dos alunos é a recuperação, diz o autor. A retificação dos erros ocorre “parcelada e fragmentariamente”, ao longo de todo o processo de aprendizagem, devendo preceder a apresentação da matéria nova (Ibidem, p. 438). Como Fontoura, Mattos compreende a recuperação como retificação de erros.

É conveniente lembrar que retificar corresponde a tornar reto, alinhar, corrigir, endireitar.

Na década de 1960, quando foram publicadas as obras acima, estava em vigor a Lei 4024/61, que não trata da recuperação da aprendizagem, incluída na legislação educacional brasileira pela Lei 5692/71, em seu artigo 14: “… o aluno de aproveitamento insuficiente poderá obter aprovação mediante estudos de recuperação proporcionados obrigatoriamente pelo estabelecimento de ensino”. Assim concebida, a recuperação não tem compromisso com as aprendizagens, mas com a aprovação. A sua presença na Lei 5692/71 pode ter motivado a sua inclusão em livros a partir desta década.

Para Schmitz (1984) e Piletti (1984), a recuperação pode ser preventiva ou terapêutica. É preventiva quando se ocupa, imediatamente, de recuperar falhas de aprendizagem, sendo terapêutica a realizada ao final de um período regular de aulas, semestre ou ano, segundo Piletti. Schmitz alerta não ser seu objetivo recuperar notas ou conceitos nem promover a aprovação do aluno. O principal é que o estudante assimile as aprendizagens indispensáveis ao prosseguimento dos estudos.   

Nérici (1983) denomina de continuidade a avaliação que orienta o ensino, verifica, avalia e, se necessário, providencia a retificação ou recuperação, imediatamente. Livros da década de 1980 também incluem a recuperação da aprendizagem. 

Desenvolvendo um trabalho em uma instituição educacional profissionalizante, no período de 1983 a 1986, no Estado de São Paulo, Depresbiteris (1989) constatou as dificuldades enfrentadas por docentes para realizarem a recuperação dos alunos: planejá-la, em função do pouco tempo a ela destinado; identificação dos pontos falhos dos alunos, assim como determinar critérios para considerá-los recuperados; estimulá-los a participarem do processo de recuperação e avaliarem o ganho de aprendizagem alcançado (Idem, p. 63). Percebe-se que constituía uma atividade à parte e desenvolvida rapidamente, sem compromisso com as aprendizagens.   

Segundo a autora, os professores ofereceram sugestões para a melhoria da avaliação da aprendizagem. A única relacionada à recuperação é o oferecimento de condições mais adequadas para o seu desenvolvimento.

A Lei 9394/1996 manteve a obrigatoriedade da recuperação da aprendizagem, em seu artigo 24, inciso V, estabelecendo como um dos critérios de verificação do rendimento escolar a “obrigatoriedade dos estudos de recuperação,  de preferência paralelos ao período letivo, para os casos de baixo rendimento, a serem disciplinados pelas instituições de ensino em seus regimentos”. Esta redação não é clara. Em primeiro lugar, quais são esses casos? Estariam associados a notas baixas? Elevação de notas é o que importa? Os estudantes que não se encaixarem nesta situação, mas demonstrarem lacunas em sua aprendizagem, não passarão por recuperação? Em segundo lugar, a vinculação de casos de recuperação ao baixo rendimento destrói o mérito que ela poderia ter. Em terceiro lugar: rotular estudantes por apresentarem baixo rendimento não condiz com o compromisso da escola de promover suas aprendizagens. Por último, é inadequado o uso da  palavra recuperação. Recuperar significa recobrar o perdido; adquirir novamente. Portanto, não se pode recuperar o que não existiu. Desde a década de 1960 esta palavra vem sendo utilizada inapropriadamente.

Paro (2001) considera a recuperação, paralela ou a posteriori, como um remendo, se for desenvolvida isoladamente do processo escolar. Indaga: “por que não tomar medidas que evitem o problema, tornando o ensino efetivamente eficaz, em vez de remediá-lo?” (PARO, 2001, p. 136). Acaba sendo um prêmio de consolação ao estudante que passou por uma avaliação negativa, acrescenta.

Hoffmann (2001) também faz ressalvas ao termo recuperação, que “vem sendo tradicionalmente concebido como repetição, retrocesso, retorno, voltar atrás” (HOFFMANN, 2001, p. 32). Como exemplo cita as provas de recuperação ao final dos bimestres, quando se repetem testes, realizam-se trabalhos sobre temas já estudados, com vistas à recuperação de notas. Em oposição, defende que “estudos paralelos de recuperação são inerentes a uma prática avaliativa mediadora, com a intenção de subsidiar, provocar, promover a evolução do aluno em todas as áreas do seu desenvolvimento” (Idem, p. 32). São, portanto, momentos planejados e articulados ao trabalho escolar, acrescenta.

A autora elenca as seguintes distorções da recuperação da aprendizagem, por ela observadas: “aulas extraclasse com outros professores e/ou várias turmas reunidas; semanas de recuperação ao final dos bimestres ou trimestres só para os alunos que precisam; professores que ficam em gabinetes e se colocam à disposição dos alunos para resolver suas dúvidas” (Ibidem, p. 35).

Vasconcellos (2005) inclui a recuperação no item do seu livro que trata das novas oportunidades de aprendizagem. Não se trata do cumprimento de uma formalidade legal. É a expressão do compromisso dos educadores com a efetiva aprendizagem por parte de todos os estudantes. É um processo que precisa ser bem pensado, para não se transformar em mera recuperação de nota (VASCONCELLOS). Ao contrário, o mais importante não é ficar criando mecanismos compensatórios, “mas alterar a dinâmica da sala de aula: passar a dar atenção ao aluno em suas necessidades no processo e não ‘encaminhá-lo’ para outros momentos” (Idem, p. 83).

A prática da recuperação de aprendizagem, prescrita pela Lei 9304/96, não se coaduna com o trabalho pedagógico que não deixa nenhum estudante para trás. A sua presença transmite a mensagem de que não é necessário levar as atividades escolares a sério porque a recuperação assegura a aprovação. Outro dos seus danos é o fato de os professores criarem momentos específicos para desenvolvê-la, por ser prevista na legislação educacional. Também os pais a aceitam por desejarem o sucesso dos seus filhos, em termos de notas altas. Assim se configura a avaliação classificatória, tão presente nas escolas. Mas é possível mudar? Sim, é possível driblar a lei que a impõe.  

A função formativa da avaliação, em lugar de criar momentos pontuais de recuperação das aprendizagens, promove intervenções pedagógicas durante todo o processo pedagógico. Intervir, nesse sentido, significa criar situações de aprendizagem; fazer-se presente. A recuperação pode produzir classificação, rótulos depreciativos e mal estar entre os estudantes, pelo fato de vincular-se a notas e à aprovação. Já a intervenção pedagógica, por integrar-se ao trabalho, atende a todos eles, nos momentos em que necessitam de ajuda para prosseguir. É aconselhável que seja uma atividade rotineira, da qual todos participarão, em algum momento, para que se desmistifique o seu caráter punitivo.

Uma forma de atender à exigência legal é incluí-la nos documentos oficiais e justificar que será desenvolvida por meio de intervenções pedagógicas, apresentando-as como atividades dinâmicas e possibilitadoras de manter as aprendizagens em dia. Este é o seu grande diferencial.

Intervenções pedagógicas sistemáticas podem ser o caminho para a eliminação de notas e reprovação.       

REFERÊNCIAS

DEPRESBITERIS, Léa. O desafio da avaliação da aprendizagem: dos fundamentos a uma proposta inovadora. SP: EPU, 1989.

FONTOURA, Afro do Amaral. Didática geral. Rio de Janeiro: Gráfica Editora Aurora, Ltda, 1964, 4ª ed.

HOFFMANN, Jussara. Avaliar para promover: as setas do caminho. Porto Alegre: Mediação, 2001.

MATTOS, Luiz Alves de. Sumário de didática geral. Rio de Janeiro: Gráfica Editora Aurora, Ltda, 1967, 7ª ed.

NÉRICI, Imídeo G. Didática: uma introdução. SP: Atlas, 1983.

PARO, Vitor Henrique. Reprovação escolar: renúncia à educação. SP: Xamã, 2001.

PILETTI, Claudino. Didática geral. São Paulo: Editora Ática, 1984.

SCHMITZ, Egídio Francisco. Didática moderna: fundamentos. Rio de Janeiro: LTC, 1984.

VANCONCELLOS, Celso dos S. Avaliação da aprendizagem: práticas de mudança – por uma práxis transformadora. SP: Libertad, 2005.