Dever de casa: em nome da punição ou da aprendizagem?

Enílvia Rocha Morato Soares

A Prefeitura de Caratinga informou no fim da tarde desta segunda-feira (28/6) a morte do garoto de 6 anos, que foi espancado pelo pai, um homem de 26 anos, que deu socos na criança porque ela não conseguia resolver uma tarefa da escola, o chamado “dever de casa”. (Correio Braziliense, 29/06/2021)

Além dos sentimentos de repugnância, horror e indignação que nos suscita o fato gerador da notícia acima, ele nos remete, mais uma vez, à necessidade urgente de se repensar coletivamente as tarefas encaminhadas pela escola para que sejam realizadas fora dela, incluindo nesse processo, em especial, os estudantes e seus familiares.

A naturalização desse tipo de atividade, que torna mecânica sua adoção, é, em grande medida, responsável por situações de coação e punição, como as denunciadas por crianças de uma turma de 3º ano de escolaridade ao serem questionadas quanto ao modo como eram acompanhadas na realização dos deveres de casa (VILLAS BOAS e SOARES, 2013, p. 73):

  • Minha mãe fica nervosa e grita comigo.
    • Quando eu não sei fazer o dever de casa, minha vó faz gritando comigo e fala que eu sou burra. 
    • Quando a minha mãe me ensina… fala, fala, fala e, se eu erro, ela me coloca de castigo. 
    • Quando não faço certo, minha mãe me belisca. 
    • Uma vez, meu irmão não estava conseguindo fazer o dever de casa, meu pai pegou e bateu a cabeça dele na mesa e no outro dia foi minha mãe que puxou a orelha dele. Aí sangrou.

O perigo que ronda uma parcela de estudantes nos momentos de realização das tarefas realizadas em casa foi confirmado por uma mãe ao declarar (VILLAS BOAS e SOARES, 2013, p. 90):

  • Quando ela [referindo-se à filha] fala: eu tenho um monte de tarefa, eu falo: ah não! Aí eu fico fazendo comida e ajudando porque trabalho o dia todo. Aí já respondo agressivamente. Eles fazem com raiva… o pai ajuda com raiva.  Já chamei ele [referindo-se ao outro filho] de burro no horário do dever. E ele fala: eu sou burro mesmo!

            Embora não exista argumento que justifique agressões verbais, castigos físicos e, é óbvio, a morte de uma criança, o que se percebe é que os pais ou responsáveis nem sempre estão preparados ou em condições de orientar os filhos nos afazeres escolares. A esse respeito cabe questionar: Eles deveriam estar? A educação que cabe a eles oferecer inclui o ensino escolar? A formação docente seria, então, dispensável?

            O justo argumento comumente utilizado por educadores de buscar, por meio do dever de casa, envolver as famílias no processo formativo dos estudantes não pode ser automaticamente estendido a todas elas. A reportagem inicialmente apresentada fornece indícios que confirmam esse pressuposto quando explica que o pai, autor do assassinato, irritou-se ao orientar o filho na resolução das tarefas de casa porque ele errava sempre, não entendia as questões, nem as orientações que recebia. E acrescenta: confessou que estava bêbado quando o socou e tinha passagem pela polícia por homicídio.

            Não se trata de culpabilizar a escola por um ato tão vil, mas de chamar a atenção para a parcela de responsabilidade que lhe cabe de discutir suas práticas, especialmente quando estas requerem o envolvimento de terceiros. A tão desejada participação das famílias na escolarização dos estudantes não pode ficar restrita ao cumprimento do estabelecido pela escola, que conta com estruturas familiares nem sempre reais. Atividades como as tarefas de casa devem ser refletidas e discutidas com todos os envolvidos desde a decisão por sua adoção, passando pelo seu planejamento e sua avaliação (tanto das atividades realizadas em casa como do próprio planejamento, que deve ser reformulado sempre que necessário). Caso se decida pela não utilização de deveres de casa, práticas alternativas podem ser discutidas de modo a substituí-los.

Vale destacar, no entanto, que a almejada participação das famílias requer mudanças no modo como costumam ser percebidas no âmbito das escolas. É preciso desfazer “mitos de que as [elas] não participam ou não se mostram interessadas em participar. Talvez sejam os olhares e as ações dos profissionais que ocupam o espaço da escola que colaborem para que esse fenômeno ocorra. Essa visão precisa ser reconstruída (DALBEN e SORDI, 2009, p. 160)

Além de contribuir para evitar que os estudantes sejam alvo de sofrimentos e constrangimentos, as atividades escolares oriundas de reflexões e discussões coletivas reúnem maiores condições de promover aprendizagens, papel social da escola.

Referência:

DALBEN, Adilson; SORDI, Mara Regina Lemes de. Avaliação Institucional: Qual o seu poder? In: SORDI, Maria Regina Lemes de. SOUZA, Eliana da Silva. (Orgs.). A avaliação como instância mediadora da qualidade da escola pública: a rede municipal de educação de Campinas como espaço de aprendizagem.Campinas-SP: Millennium, 2009.

VILLAS BOAS, Benigna Maria de Freitas; SOARES, Enílvia Rocha Morato. Dever de casa e avaliação. Araraquara-SP: Junqueira & Marin, 2013.