Discussões de gênero nas feiras de ciências: relato do caso da feira Ciência Viva

 

Relatos como este precisam ser divulgados para que o tema seja compreendido. Não se pode cercear o trabalho da escola. Está ocorrendo uma confusão enorme: “gênero” não é sinônimo de educação sexual. Que os incompetentes atuem em suas áreas específicas e deixem as escolas trabalharem em paz.

JC Notícias – 16/01/2019

Discussões de gênero nas feiras de ciências: relato do caso da feira Ciência Viva

 

Artigo de Adevailton Bernardo dos Santos, professor do Instituto de Física da Universidade Federal de Uberlândia, presidente do Conselho Curador do Museu Diversão com Ciência e Arte (Museu Dica) e coordenador da feira Ciência Viva

As feiras e mostras científicas atualmente se constituem em eventos que buscam oportunizar a apresentação e divulgação de trabalhos e projetos científicos e de inovação que são desenvolvidos por estudantes da Escola Básica. Além deste movimento de divulgação científica elas possibilitam que os estudantes, ao desenvolverem os seus projetos, se tornem parte ativa do próprio aprendizado. Talvez pelo motivo destes eventos associarem o aprendizado a atividades que levam a construção ativa de conhecimento, e com isto estimular e motivar os estudantes para aprendizagens que transcendem o currículo escolar, cada vez mais elas estão presentes no cotidiano escolar. No entanto, apesar de reconhecidas vantagens, as feiras e mostras científicas também são alvos de decisões que podem levar a consequências não tão benéficas.

Este texto tem o objetivo de relatar acontecimentos em uma Feira de Ciências municipal, a XXIII Ciência Viva, que aconteceu nos dias 12 e 13 de novembro de 2018, na Universidade Federal de Uberlândia, e gerar com isto questionamentos e reflexões na sociedade, principalmente a que trabalha com Ciência e Educação.

A Feira Ciência Viva, além de objetivos próximos a diversos outros eventos similares, possui alinhamento com o tema da Semana Nacional de Ciência e Tecnologia, que em 2018 foi “Ciência para redução das desigualdades”. A edição de 2018 teve cerca de 150 trabalhos inscritos, provenientes de diversas escolas de Educação Básica da cidade de Uberlândia (MG), mas devido a problemas de espaço e recursos financeiros foi necessário fazer uma seleção e apenas 100 trabalhos foram aprovados para apresentação.

A seleção dos trabalhos envolveu a leitura de todos os textos submetidos no momento da inscrição por membros da comissão organizadora, e considerou diversos critérios, que foram publicados previamente, e abordavam a qualidade do texto produzido, a criatividade e inovação, além da metodologia utilizada, privilegiando métodos alinhados com o de trabalhos científicos. Nenhum dos trabalhos avaliados continha dogmatismo ou proselitismo na abordagem de qualquer assunto e nem trazia dados e informações que pudessem interferir ou causar qualquer prejuízo à formação do público alvo da feira. Por fim foi publicada a lista com os títulos dos trabalhos aprovados e realizado contato com todos os participantes, além de ser solicitado autorizações dos pais e responsáveis para que estudantes menores de idade pudessem participar do evento.

No entanto, na véspera do evento, membros da comissão organizadora começaram a receber notícias, informais, por meio de algumas mensagens, de que a Prefeitura Municipal, estava verificando e solicitando que dois dos trabalhos aprovados, que envolviam discussões de gênero, provenientes de escolas da rede municipal, fossem retirados da apresentação. Dado a proximidade do evento a comissão organizadora não teve como emitir opinião oficial, pois além de não ter sido consultada, não tinha informações suficientes para discussões e decisões. A comissão organizadora manifestou-se informando que todos os trabalhos aprovados estavam aptos para apresentação, e não tinha como interferir na decisão dos autores e da escola em comparecer ou não ao evento. Surpreendentemente, a Secretaria Municipal de Educação determinou que nenhum dos trabalhos de escolas da rede municipal poderia participar do evento. O comunicado foi enviado aos diretores das escolas, às 22h do dia anterior ao início do evento.

A organização do evento, pega de surpresa e sem muitos espaços para manobras, fez o que estava a seu alcance e realizou as atividades previstas, mesmo com a ausência de 35 trabalhos, com distintos assuntos, provenientes da rede municipal. Cabe citar, que por iniciativa própria de contrariar a determinação, 11 destes trabalhos, com a ausência dos professores orientadores, mas com presença de pais, foram apresentados.

Procurada para esclarecimentos a Prefeitura Municipal de Uberlândia não emitiu nenhuma justificativa. Um vereador da cidade, que esteve junto ao processo que culminou com a decisão de não apresentação dos trabalhos, se manifestou e confirmou que a problemática se originou devido a aprovação de dois trabalhos que envolviam discussões de gênero. Para se ter ideia dos fatos e da repercussão sugiro ver o vídeo disponível em http://g1.globo.com/minas-gerais/triangulo-mineiro/videos/t/todos-os-videos/v/alunos-da-rede-municipal-de-uberlandia-ficam-de-fora-da-23-feira-da-ciencia-viva-na-ufu/7158185/.

Este episódio deixa no ar vários questionamentos e dúvidas que devem ser objetos de constantes reflexões na comunidade acadêmica e sociedade em geral.  Quais os caminhos que se projetam para a educação, ciência e tecnologia com os legislativos atuais? Quais os caminhos que se projetam para a educação, ciência e tecnologia quando nos deparamos com iniciativas similares a do projeto de lei “Escola Sem Partido”? O que cada um de nós pode fazer em relação às manifestações sobre a discussão de gênero nas escolas?

Algumas percepções consigo expressar a partir das conversas, discussões e observações que tive neste incidente. A primeira, e talvez a mais básica, é que várias pessoas confundem discussões de gênero com orientação sexual, e até com práticas sexuais, sendo que a desinformação de um grande contingente da população acerca destes conceitos, está na gênese de várias polêmicas. Um outro ponto, que considero um erro e equívoco é a imposição de um ponto de vista à escola e, assim, levá-la a se abster da abordagem de temas como gênero.

Os gestores educacionais sabem que a escola corresponde ao local onde os estudantes passam grande parte de seu tempo e em convivência com pessoas de mesma idade. Assim, querendo ou não, com os devidos conhecimentos ou não, eles discutem estes temas entre si, e muitas vezes, por não encontrarem em outros locais, pessoas com formação adequada para sanar as suas dúvidas e angústias, solicitam auxílio aos docentes. Por fim, acredito e compartilho a ideia que qualquer ação, incluindo projetos de lei, que se baseia em percepções que não tem referência em conhecimentos científicos e sólidos, fica fadada ao infortúnio e não trará benefícios sociais a população em geral, nem as crianças e adolescentes em particular.

Sobre o autor:

Adevailton Bernardo dos Santos* é doutor em física e professor associado do Instituto de Física da Universidade Federal de Uberlândia. Preside o Conselho Curador do Museu Diversão com Ciência e Arte (Museu Dica) e é coordenador da feira Ciência Viva.

*Este artigo expressa exclusivamente a opinião de seu autor.