JC Notícias – 02/05/2025
“Educar é levar de dentro para fora. É retirar a pessoa de sua individualidade fechada em favor de novos rumos, espaços antes inexplorados e desconhecidos. Por isso, a educação é libertadora. Ela rompe com o sistema de castas, no qual os filhos reproduzem os pais. Idealmente, ela põe em cheque também a hierarquia de classes. Para tanto, ela precisa do diálogo”, escreve Renato Janine Ribeiro, presidente SBPC, para a editoria especial desta sexta-feira
Por muito tempo, foi praxe considerar que, no quadro iluminista do século XVIII, ante Voltaire, Diderot e outros grandes philosophes, alguns dos quais escreveram esse monumento do conhecimento e de sua divulgação que é a Encyclopédie, o filósofo franco-suíço Jean-Jacques Rousseau constituiria uma personalidade isolada, minoritária, praticamente derrotada. Com efeito, enquanto seus colegas e por um tempo amigos celebravam a ciência, ele escrevia seu primeiro grande ensaio, sustentando que ciências e artes degradaram a humanidade. Mas um olhar mais atento nota o quanto devemos a Rousseau.
Tomemos duas lições famosas dele, “o homem nasce livre e em toda a parte está a ferros”, frase que abre a obra-prima liminar da democracia moderna, O contrato social (1762), e a ideia de que o ser humano nasce bom, mas a sociedade o corrompe, indicada no Emilio ou da Educação, do mesmo ano: em ambas se remete a uma pureza inicial, corrompida pelo ambiente social. Uma leitura apressada diria que Rousseau defenderia um individualismo radical, avesso a todo convívio social. Muito ao contrário: o mundo que ele abre é o de um estudo rigoroso da sociedade. Não à toa, Emile Durkheim celebrou-o como um dos dois fundadores das ciências sociais (o outro sendo Montesquieu).
Até Rousseau, predominava no Ocidente a ideia de que a criança seria simplesmente um “adulto em miniatura” — aliás, o feto era visto como um homúnculo, uma réplica microscópica de um ser humano crescido. Rousseau, no entanto, demonstrou que a infância é um estágio distinto, com características físicas, emocionais e psicológicas próprias. Seu Emílio lançou as bases da pedagogia moderna, defendendo que a educação deveria respeitar o desenvolvimento natural da criança, em vez de impor-lhe precocemente os valores e vícios da sociedade adulta.
Essa visão trouxe consigo uma poderosa — e talvez problemática — noção: a da pureza original da criança. Responsável também pelo mito do “bom selvagem”, Rousseau acreditava que o ser humano nasce inocente e é corrompido pela civilização. Essa ideia moldou profundamente nossa concepção de infância, levando-nos a enxergar a criança como um ser intrinsecamente bom, cuja violência ou maldade só pode ser fruto de influências externas.
Finalmente, deu um tom afinal de contas otimista às propostas que, logo após sua morte, começariam a florescer com a era das revoluções. Toda revolução acredita, nas palavras que dão título à peça 1793, de Ariane Mnouchkine (estreou em 1972), que “a cidade revolucionária é deste mundo”, que a felicidade não terá lugar apenas no Além, mas pode irromper aqui e agora.
É essa a questão que se coloca quando nos deparamos com a questão da violência nas escolas: se a violência em grande escala não é ínsita à natureza humana, quais são seus condicionantes sociais? O Brasil despertou para tal violência com o massacre numa escola do Realengo, na cidade do Rio de Janeiro, em 2011. Ex-alunos irem a um estabelecimento de ensino e assassinarem a esmo funcionários, professores e colegas já era uma triste tradição nos Estados Unidos, mas não em nosso país.
Qual a folha corrida de frustrações que leva alguns a matarem pessoas que nada têm a ver com eles – ou muito pouco? Estará a escola descumprindo sua promessa civilizatória de abrir as pessoas para o mundo, de multiplicar as oportunidades à sua frente? Décadas atrás, havia sim na escola uma tradição de humilhações. Eu mesmo vi professoras, no que hoje se chama Fundamental I, se gabarem de reprovarem a maior parte dos estudantes, o que mostraria que elas seriam rigorosas.
Faz um século, a palmatória – e vários castigos físicos – faziam parte do arsenal de violências contra os alunos que, ou não aprendessem, ou se portassem mal. Mas pouco resta disso – embora, mesmo em pequena proporção, isso continue sendo inaceitável.
Estará o ambiente social se tornando tóxico? Estes anos, o ódio tomou conta das relações humanas.
Sabemos como isso se deu: a crise econômica iniciada nos Estados Unidos em 2008 se espraiou pelo planeta e não apenas reduziu salários e empregos como perturbou seriamente as expectativas de uma vida melhor, que constituem uma das grandes promessas num mundo que, desde a queda das ditaduras de direita e esquerda na década de 1980, promoveu, durante pelo menos três décadas, a redução da fome e da miséria. Nestes últimos 15 anos – no Brasil, nos últimos dez – recuamos nas conquistas que devemos, aqui, à democratização de 1985.
O que fazer, então? O ambiente escolar é aquele em que aprendemos a sair de nossas bolhas. Educar vem do latim ex, que indica um movimento de dentro para fora, somado ao verbo ducere, que em português deu conduzir, induzir, deduzir, assim expressando o movimento. Ou seja, educar é levar de dentro para fora. É retirar a pessoa de sua individualidade fechada em favor de novos rumos, espaços antes inexplorados e desconhecidos. Por isso, a educação é libertadora. Ela rompe com o sistema de castas, no qual os filhos reproduzem os pais. Idealmente, ela põe em cheque também a hierarquia de classes.
Para tanto, ela precisa do diálogo. É um lugar de escuta e atenção. Ora, a grande regressão dos anos 2010 calcificou opiniões, muitas vezes sem base na realidade, tornando muito difícil quem está errado tomar consciência de seu erro e se corrigir. Isso acontece no conhecimento e também no plano da ação. No conhecimento, cresce uma aversão à ciência. É verdade que as pesquisas de opinião mostram uma grande confiança da sociedade nas ciências. Mas, mesmo assim, é chocante saber quanta gente, no Brasil e nos Estados Unidos, acredita que a Terra seja plana. Já no campo da ação, aumenta o número de pessoas que não querem reconhecer seus erros – ou mesmo crimes. Caso exemplar é o da propalada anistia aos golpistas de 8 de janeiro de 2023. Pedem para não cumprirem as penas de seus crimes, pedem alguma forma de perdão, mas não querem oferecer desculpas. Não se arrependem. Só lamentam terem perdido a parada e terem sido pegos.
O que pode a ciência fazer neste quadro de coisas? Vejo dois rumos. Um primeiro é o de estudarem, sobretudo as ciências humanas, o que leva a esse ensurdecimento ao outro, ao conhecimento rigoroso – e definirem, essas ciências, quais os melhores caminhos para recuperarmos o diálogo. O segundo é divulgar o conhecimento científico, proposta em que a SBPC foi e continua sendo pioneira. E finalmente, tudo isso tem que estar no quadro de políticas públicas robustas.
Renato Janine Ribeiro, presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência – SBPC