Entrevista à Revista Com Censo, da Secretaria de Estado de Educação do DF, v. 4, n. 4, 2017

 

Entrevista à Revista Com Censo, da Secretaria de Estado de Educação do DF, v. 4, n. 4, 2017

Benigna Maria de Freitas Villas Boas

  1. Por que a avaliação foi sua escolha como área de pesquisa?

Em 1962 conclui o Curso Normal no Elefante Branco. Pertenci à primeira turma a realizar o curso completo em Brasília. Não me lembro de a avaliação ter sido um tema de destaque. Quando íamos “dar” nossas aulas na Escola de Aplicação, preocupávamos mais com as estratégias pedagógicas. As professoras dessa escola nos ajudavam a preparar as aulas porque desenvolvíamos o que caberia a elas. Em fevereiro de 1963, fui contratada como professora horista (era a designação para os professores não concursados) da Fundação Educacional do DF. Fui enviada para a Escola Classe 107 Sul, dirigida pela professora Lídia Cardoso, exigente, responsável e amiga. Minha primeira turma foi uma 4ª série primária. Reuníamos semanalmente com orientadoras da administração central, sempre para tratarmos de técnicas de ensino. Como eu trabalhava com uma turma pequena, cerca de 25 estudantes, acompanhava o progresso de cada um. Para que ninguém ficasse para trás, pedia que tivessem um caderno reservado a tarefas específicas, no qual eu mesma anotava atividades extras, de acordo com a necessidade de cada um. Assim eu dei início a uma estratégia de intervenções pedagógicas, que aconteciam assim que as necessidades surgissem. Não recebi orientação para isso. A avaliação já estava dentro de mim. Não tive estudantes reprovados.

  1. A maior parte dos seus trabalhos tem como objeto de estudo o processo de avaliação nas escolas da Secretaria de Educação do Distrito Federal (SEEDF). Como essa ligação com a Educação Básica do DF influenciou na sua prática acadêmica como professora do ensino superior e pesquisadora da área de avaliação?

Após 25 anos de trabalho na SEEDF, fiz concurso para a Faculdade de Educação (FE) da Universidade de Brasília (UnB). Era meu sonho lá atuar em cursos de formação de professores. Assumi o compromisso de não me desligar da SEEDF porque sempre entendi que o professor formador precisa estar também “dentro” das escolas de Educação Básica. Em um dos semestres em que ofereci a disciplina Avaliação Escolar para estudantes do Curso de Pedagogia, realizamos uma atividade gratificante para mim e para eles. Como tínhamos aula duas vezes por semana, uma delas acontecia em turmas de uma Escola Classe da Asa Norte. Os estudantes foram distribuídos em pequenos grupos e cada um, por dois meses, acompanhou o trabalho de uma mesma turma da escola. Na aula em que ficávamos na FE/UnB, discutíamos o que havíamos presenciado, à luz do referencial teórico adotado. Importante: eu estive presente em todos os encontros na escola. O ponto alto do trabalho foi a percepção inicial dos estudantes: não viam acontecer a avaliação enquanto estavam na escola porque, até então, ela significava aplicar provas. A partir daí começamos a discutir a concepção e o formato da avaliação formativa.

A ligação que sempre mantive com a Educação Básica serviu de inspiração para a criação do Grupo de Pesquisa Avaliação e Organização do Trabalho Pedagógico – GEPA – em 2000, cadastrado no CNPq e certificado pela UnB, do qual fazem parte ex-orientandos de mestrado e doutorado, quase todos professores da SEEDF. Este grupo desenvolve pesquisas sobre avaliação, realiza encontros com grandes grupos de profissionais da educação e nas escolas, escreve artigos, livros e capítulos de livros.

  1. Alguns trabalhos sobre avaliação apontam que os professores possuem dificuldades de entendimento da concepção formativa de avaliação. Como você avalia a abordagem da temática da avaliação nas licenciaturas brasileiras? Como a avaliação continuada pode contribuir para fortalecer a prática pedagógica avaliativa?

Os cursos de licenciatura têm enfrentado dificuldade em praticar a avaliação contrária à classificatória e em dar destaque à aprendizagem da avaliação. Pesquisas indicam que este tema não faz parte do processo de formação dos professores desses cursos que, consequentemente, a ele não dão importância. Há aqueles que dizem que não gostam da avaliação. Outros afirmam ser difícil avaliar. Observo que, de modo geral, avaliação é sinônimo de prova. Assim se formam os futuros professores que, ao chegarem às escolas e encontrarem a exigência de adoção da avaliação formativa, não sabem o que fazer. Vem, então, a necessidade da formação continuada, assim que os professores recém-formados chegam às escolas. Contudo, essa atividade necessita ser repensada.  Não pode ser uma atividade eventual, paralela e dissociada do trabalho e do contexto dos professores. Desenvolvê-la para grandes grupos não tem alcançado seus objetivos porque se reúnem docentes de várias escolas, provenientes de diferentes contextos, o que talvez não consiga atrai-los para a realização de estudos. Sendo um trabalho com grandes grupos, a tendência é a apresentação de temas por palestrantes, com o apoio de slides. Este formato já se esgotou. O grande desafio é torná-la parte integrante da ação docente, realizada na própria escola, com apoio de livros e textos. Investir em procedimentos de avaliação formativa sem que os professores tenham fundamentação teórica e interesse por ela é tempo perdido.

  1. Você participou como consultora técnica da construção de documentos da SEEDF, como as Diretrizes de Avaliação Educacional. Como foi a experiência de participar da construção desse documento? Como você avalia a influência desse documento na prática pedagógica da sala de aula?

Acompanhei o processo de construção das três últimas versões. A primeira foi elaborada por um grupo de professores que atuavam no nível central e não houve a participação de docentes de sala de aula, naquele momento. Era um documento bem simples, cuja importância foi chamar a atenção para a necessidade de orientações sobre o tema. Da segunda versão à de 2014/2017, houve avanços. Mas, não há muito a comemorar, porque a avaliação ainda não é praticada para promover as aprendizagens e reorganizar o trabalho pedagógico. Tenho notícias da existência de um número considerável de professores que não conhece o documento. Embora ele esteja disponível para leitura e impressão, ainda não foi criado o hábito de os professores o terem em mãos.

Um documento que trace as diretrizes de avaliação é importante apoio aos docentes. Um dos seus benefícios é a inclusão da concepção de avaliação, sem a qual a escolha dos procedimentos ficará desamparada.

Um dos grandes desafios é a sua discussão com os pais/responsáveis, para que se envolvam no processo de avaliação e cobrem das escolas a adoção das suas orientações.

Um aspecto a ser considerado é a necessidade de compreensão, por todos os atores escolares, de que as orientações sobre avaliação não valem por si, não são isoladas, mas se entrelaçam às ações curriculares e ao Projeto Político-pedagógico. Daí a importância de um documento desse porte.

5 As Diretrizes de Avaliação indicam a articulação entre os três níveis de avaliação, aprendizagens, larga escala e institucional. Como essa articulação pode ser concretizada na escola de forma efetiva?

Por meio da mediação da avaliação institucional participativa que, devidamente praticada, confere legitimidade e poder à escola. Percebe-se, então, a centralidade da avaliação como articuladora das decisões pedagógicas. A escola realiza momentos de avaliação institucional, como conselhos de classe, reuniões com propósitos diversos, mas ainda sem sistematização, sem incluir todos os atores e sem integrar a avaliação para as aprendizagens e os resultados da avaliação em larga escala. Esta última ainda não é bem compreendida. A avaliação institucional participativa cria a oportunidade para que seus resultados sejam interpretados e a escola neles se reconheça. Assim entendido, o processo de avaliação institucional participativa dá segurança às decisões escolares.

  1. Como ressignificar a avaliação educacional para uma perspectiva formativa e emancipadora? E de que forma a avaliação informal pode influenciar no processo pedagógico?

A avaliação é realizada pelos três níveis do sistema de ensino: central, intermediário e local (escola). Embora cada um tenha seu foco de atenção, os três têm o mesmo interesse: a oferta de ensino de qualidade social. Suas ações baseiam-se nos princípios democráticos e emancipadores da avaliação formativa. O trabalho pedagógico escolar é reforçado quando os níveis central e intermediário também se norteiam por essa concepção de avaliação. A falta desse entendimento pode ser um dificultador da prática da avaliação formativa nas escolas.

Na perspectiva da avaliação formativa, a modalidade informal vale-se de ações encorajadoras. As desencorajadoras, que costumam rotular, humilhar, punir e classificar, não têm lugar. Assim compreendida e praticada, a avaliação impulsiona o trabalho pedagógico comprometido com as aprendizagens de todos.

A ressignificação da avaliação no âmbito do sistema de ensino exige a construção da cultura de avaliação formativa incorporada pelos atores dos seus três níveis.

  1. O Brasil e o Distrito Federal têm altos índices de reprovação escolar. O que revelam esses índices? Como enfrentar esse desafio?

A reprovação escolar não é uma produção apenas da escola. Esses índices revelam desprezo pelo trabalho escolar, pelos docentes e pelos estudantes. Muitas vezes têm como causa a falta de condições físicas das instituições.

Revelam a existência de formação inadequada dos professores, tanto dos que atuam como formadores, nos cursos de licenciatura, quanto dos futuros docentes da educação básica. Os cursos de licenciatura são responsáveis, em parte, por essa situação.

Corrigir tão grave problema, a curto prazo, no Brasil, exigirá grande esforço. As ações têm de ser enérgicas. No Distrito Federal, é possível eliminar a reprovação em pouco tempo. Basta vontade política. Ações urgentes: reorganizar as escolas para que possam acolher devidamente todos os estudantes (espaço físico, equipamentos, material didático, biblioteca etc.); reduzir o número de estudantes em sala de aula; exigir o cumprimento do tempo de aula com efetivas atividades junto aos estudantes; incluir os pais/responsáveis na organização do trabalho pedagógico; deixar os gestores em tempo integral dentro das escolas; criar condições para que as intervenções pedagógicas se realizem assim que os estudantes manifestem necessidades; cumprir o calendário escolar com predominância de encontros entre professores e estudantes, colocando em segundo plano atividades secundárias; redimensionar a formação continuada dos docentes.

  1. Como pode ser articulado na escola o currículo, a avaliação (aprendizagem, larga escola e institucional) e o Projeto Político Pedagógico?

Os três falam a mesma linguagem e se complementam. Um não pode destoar do outro. Por onde começar? O projeto político-pedagógico – PPP – traça as orientações gerais do trabalho a cada ano, incluindo as ações curriculares e as avaliativas. Como já mencionado, a avaliação institucional participativa serve de mediadora dos outros dois níveis avaliativos. Isso significa que ela recebe todas as informações, as analisa e traça novos rumos, se for o caso. O PPP acolhe todas as orientações e as atualiza a cada ano. Surge, então, a necessidade de registro de tudo isso ao longo do ano letivo, para que todos os atores acompanhem e participem do trabalho desenvolvido. O que antes era apenas um projeto vai ganhando forma com o decorrer do ano.

  1. Os dados da avaliação educacional podem ser utilizados para a elaboração e avaliação de políticas públicas educacionais. Quais os desafios e perspectivas da utilização da avaliação educacional pelo gestor público?

Baseando-me nos princípios da avaliação democrática e emancipadora, indico o desafio de os dados refletirem a realidade das escolas e a elas retornarem devidamente analisados e com encaminhamentos para a solução de problemas identificados; o de advirem dos diferentes atores escolares; e o de serem atualizados a cada ano.

Como perspectiva há de se considerar o objetivo primordial do sistema de ensino: promover as aprendizagens de todos os estudantes e dos professores, o que requer a existência de escolas em que essas aprendizagens sejam possíveis para todos.