JC Notícias – 15/12/2021

Apontamentos a respeito das Diretrizes Gerais sobre Aprendizagem Híbrida

“O que está sendo proposto modifica o encontro pedagógico, supondo que ele pode se manter tão potente na forma remota quanto na interação presencial. Abre-se, assim, a possibilidade de que a maior parte da escolarização prescinda da interação presencial das/os estudantes com suas(eus) professoras(es) e colegas, das trocas fundamentais que assim se constituem”, aponta Claudia Galian, professora da Faculdade de Educação da USP, e outros autores*, em artigo para o jornal da universidade

As Diretrizes Gerais sobre a Aprendizagem Híbrida, apresentadas para consulta pública pelo Conselho Nacional de Educação no mês de novembro de 2021, demandam análise crítica, diante de seus potenciais impactos sobre a educação básica e a educação superior, notadamente a formação de professores.

Como já é possível reconhecer na BNCC, nessas Diretrizes Gerais sobre a Aprendizagem Híbrida optou-se por falar em aprendizagem e não em ensino. Centraliza-se, assim, o processo pedagógico na(o) estudante e, principalmente, naquilo que ela(e) deverá ser capaz de fazer na sua trajetória escolar. Nessa perspectiva, o professor, se devidamente “treinado” para atuar como um técnico na implementação da BNCC, é entendido como elemento de menor importância, embora o texto do documento esforce-se em alguma medida por dizer o contrário. Ademais, ao enfatizar a centralidade na(o) estudante, as Diretrizes identificam no ensino remoto as soluções para problemas reconhecidos no ensino presencial, embora esses problemas não possam ser explicados pela modalidade do encontro pedagógico, implicando o enfrentamento da ausência ou precária presença do Estado no financiamento e fomento da educação pública de qualidade; sem contar que ignoram as condições objetivas para o emprego de tecnologias de comunicação, quer pelas restrições tecnológicas, de conectividade e de disponibilidade de dispositivos, quer, mais preocupante ainda, por aquelas de incorporação de conteúdos que, quase intrinsecamente, demandam interações presenciais, face a face.

O que está sendo proposto modifica o encontro pedagógico, supondo que ele pode se manter tão potente na forma remota quanto na interação presencial. Pode-se afirmar isto porque se trata de igualar os dois tipos de encontros – presencial e remoto – e seus potenciais para o desenvolvimento do ensino e da aprendizagem, uma vez que não há qualquer definição de porcentagens a serem cumpridas em uma modalidade e em outra, seja para a Educação Superior, seja para a Educação Básica – o que parece ainda mais preocupante. Abre-se, assim, a possibilidade de que a maior parte da escolarização prescinda da interação presencial das/os estudantes com suas(eus) professoras(es) e colegas, das trocas fundamentais que assim se constituem.

Certamente, isso pode gerar, entre outras consequências, o agrupamento de turmas, o fechamento de prédios escolares, a redução das equipes docentes, uma vez que boa parte – talvez a maior parte – das atividades remotas possa ser produzida e organizada para uso por longos períodos de tempo, com turmas diferenciadas, ficando as aulas presenciais sob responsabilidade de algumas(uns) professoras(es), apenas. Acresce-se que, sem dúvida, a produção desses materiais representa importante campo de atuação para as mais variadas fundações e institutos privados e filantrópicos. Pode-se cogitar, também, que aulas e outras atividades pedagógicas, a serem gravadas e, portanto, objetivadas, sejam utilizadas em substituição à ação docente presencial com seus estudantes, com implicações potencialmente mais severas em escolas privadas, como um tipo de apropriação do produto do trabalho docente.

Se somarmos a isso a forte pressão pela formação inicial e continuada de professores na estreita ligação com a BNCC – expressa claramente na BNC-Formação e na BNC-Formação Continuada –, é possível supor que as escolas contarão com profissionais responsáveis por áreas de conhecimento – preferencialmente uma/um profissional por área –, o que permitirá reduzir muito os gastos com salários de professoras/es.

Também se pode questionar a relação estabelecida com um documento de prescrição curricular, a BNCC, como se ela fosse tomada como algo definitivo – a ponto de se impor às instituições de ensino superior mudanças curriculares a ela atreladas –, e não como uma seleção cultural sempre passível de questionamentos e mudanças.

Diante dessas ponderações, fica a pergunta: por que precisamos de Diretrizes desta natureza? Para alertar sobre a sempre presente necessidade de se buscar formas de garantir as condições de aprendizagem dos estudantes? Para contar sobre o que tivemos que enfrentar durante a pandemia e/ou que os recursos tecnológicos podem representar um dos meios para conduzir a atividade de ensino? Se for para isso, não há novidade no que se afirma. O que muda é que a própria forma escolar é colocada em xeque: estar na escola, em contato presencial com professores e estudantes, passa a ser uma possibilidade que, em situações de extrema precariedade, tais como as que sabidamente caracterizam muitos dos municípios brasileiros, poderá se tornar a exceção, já que cada vez menos recursos tenderão a ser destinados aos estados e municípios, sob a alegação de que, sob a égide destas Diretrizes, não precisamos mais de tantos prédios escolares e de equipes tão grandes. Talvez se mostre mais interessante do ponto de vista econômico destinar aportes para garantir acesso à internet e a equipamentos – ou nem isso –, assim como para comprar materiais para o ensino remoto, do que manter toda uma estrutura arduamente conquistada em nosso país.

Dois pontos do texto parecem revelar seus objetivos, que não são de fato explicitados:

Não é demais relembrar que esta flexibilidade híbrida não representa novidade para os professores e outros educadores, considerando que, historicamente, na organização da oferta da educação escolar, sempre se alternavam momentos presenciais, em salas de aulas ou em outros ambientes de aprendizagem desenvolvidos no ambiente escolar, com momentos não presenciais de estudos realizados em casa ou em outros ambientes culturais e sociais.

Se já se faz o que se propõe nas Diretrizes, por que propor?

Em outro ponto, fica ainda mais evidente o objetivo da Diretriz:

As ações institucionais que vêm orientando a gestão pelas IES dos cursos presenciais e dos cursos na modalidade EaD ficam marcadas pela dualidade e segmentação […]. Estas são duas ofertas distintas, com dificuldades de interação entre ambas. Tais dificuldades são fruto do processo avaliativo regulatório que as organiza externamente às IES. As avaliações e a regulação funcionam separadas, a ponto de ordenarem conceitos institucionais distintos a uma mesma instituição, um para o presencial e outro para a EAD. Este processo expressa uma gestão regulatória que acaba impondo limites institucionais às políticas acadêmicas, aos currículos, aos docentes e mesmo às estratégias de aprendizado.

Em outras palavras, se as instituições servem para definir limites institucionais, a diretriz é feita mesmo para acabar com eles. A proposta esconde atrás de argumentação supostamente acadêmica e socialmente engajada o objetivo de retirar os limites entre a modalidade presencial e a remota. Este parece ser o único objetivo concreto, já que as demais questões que aborda, sobre as concepções e as práticas pedagógicas, não resultam de definições expressas em diretrizes ou decretos. É mister reconhecer que as escolas que puderam implementar mudanças no sentido de envolver recursos tecnológicos no processo de ensino durante a pandemia, o fizeram. Às redes públicas de ensino restam diretrizes e decretos que ignoram as condições reais de desenvolvimento do trabalho escolar, como sempre.

As proposições de ensino remoto, muitas vezes, ignoram que suas ações, ao restringirem a importância das condições infraestruturais das escolas, acabam por impor às famílias a entrada “da escola” em suas casas. Não bastando as consequências e constrangimentos de ordem material e subjetiva, acabam por transferir responsabilidades que são do Estado no escopo da educação escolar obrigatória. Ignoram ainda que mesmo as “tarefas para casa”, aludidas, como no trecho anterior, como um tipo de ensino remoto, são contestadas como fruto de muitas pesquisas que nelas identificam uma intensificação do trabalho das mulheres, usualmente, consideradas como responsáveis por elas e que acabam por acentuar as influências do nível socioeconômico no desempenho escolar.

* Outros autores: Emerson de Pietri, Ocimar Alavarse e Rosângela Prieto, professores da Faculdade de Educação da USP

Jornal da USP