Socioeducação e pandemia: a quantas anda o trabalho pedagógico?

Enílvia Rocha Morato Soares

            Se o período de pandemia motivado pela covid-19 trouxe prejuízos aos estudantes de uma maneira geral, o que dizer dos socioeducandos que, mesmo em tempos de normalidade, costumam ter suas atividades escolares prejudicadas, quando não negligenciadas, por fatores diversos, entre eles, pela falta de acesso a recursos tecnológicos que possibilitem enriquecer e diversificar os percursos pedagógicos, em atendimento às diferentes condições de aprendizagem.

Em virtude da necessidade de distanciamento social e, em decorrência, do afastamento dos professores de seus locais de trabalho, a aula remota foi o principal recurso adotado para dar prosseguimento às atividades escolares. Considerando que aos adolescentes e jovens em cumprimento de medida socioeducativa é vedado o acesso à internet, a opção foi pelo uso de atividades pedagógicas não presenciais para o ensino e cumprimento a carga horária mínima estabelecida.

Para auxiliar o encaminhamento dos trabalhos nos e pelos Núcleos de Ensino[1], a Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal (SEEDF) elaborou, em parceria com a Secretaria de Estado de Justiça e Cidadania do Distrito Federal (SEJUS), o Plano Pedagógico para realização de atividades não presenciais ou híbridas nos Núcleos de Ensino das Unidades de Internação Socioeducativas (GDF, 2020), com “a intenção de assegurar, com segurança, a escolarização na socioeducação durante o período de isolamento social provocado pela pandemia de COVID-19” (Idem, p. 8)

            Entre as diferentes orientações que constam no Plano Pedagógico, pode-se destacar a elaboração de Planos de Ação locais por Núcleo de Ensino, contendo calendário com informações sobre a periodicidade para a entrega e devolutiva de materiais, assim como nortear a construção desses materiais de modo a garantir a flexibilização dos processos avaliativos.

O documento também recomenda a organização de cronogramas semanais e alerta para a imprescindibilidade de que as atividades sejam oferecidas diariamente aos estudantes. Lembra ainda ser fundamental a constante interlocução entre os NUENs, as equipes gestoras das escolas vinculantes[2] e das unidades de internação, bem como entre os professores do Núcleo de Ensino por meio da coordenação pedagógica remota, utilizando-se de meios digitais e virtuais. A criação de canais que promovam a comunicação direta com as famílias, a fim de manter a interação entre estudantes e seus familiares é igualmente indicada pelo Plano Pedagógico.

Quanto à avaliação, o documento reitera o compromisso com os princípios da avaliação formativa, devendo o professor adotar diferentes estratégias de avaliação, visando facilitar as aprendizagens e ressignificar o protagonismo dos estudantes em seu processo de aprendizagem. Indica a utilização de portfólios, diários de bordo e relatos escritos pelos próprios estudantes como forma de autoavaliação.

Considerando que legislações, por si só, não garantem sua concretude, vale questionar: Como o Plano Pedagógico para realização de atividades não presenciais ou híbridas nos Núcleos de Ensino das Unidades de Internação Socioeducativas (GDF, 2020) está sendo implementado nos Núcleos de Ensino?

Pesquisa realizada em um Núcleo de Ensino de uma Unidade de Internação do DF (SOARES, 2020) antes do início da pandemia, ou seja, quando o trabalho pedagógico era organizado e desenvolvido presencialmente, reforça preocupações quando ao modo como o Plano Pedagógico está sendo materializado no âmbito dos Núcleos de Ensino. Irregularidades na operacionalização de orientações legais são apontadas no estudo, entre elas:

  1. Primazia dos horários das Unidades de Internação sobre os dos Núcleos de Ensino, evidenciando uma sobreposição das questões de cunho administrativo, em particular, da segurança, às atividades educativas e, em decorrência, uma dissonância entre o número de horas-aula previstas e trabalhadas nos Núcleos de Ensino.

Tá ótimo. A quantidade de aulas tá bom. Uma vez por semana tá bom. É a média aqui, né? (risos) Só devia melhorar mais aí as aulas de Educação Física porque nós devia praticar muito esporte. (estudante)

  • Desarticulação entre o Núcleo de Ensino e demais setores da Unidade de Internação, bem como escassez de Coordenações Pedagógicas intrassetorial (encontros entre coordenadores pedagógicos dos níveis central, intermediário e local), contrariando a política intersetorial prevista legalmente.

Não houve, mas essa intrasetorial ela é fundamental. […]  Nós sentimos essa necessidade de fazer mais reuniões mas aqui não acontece, entendeu? (Supervisor do Núcleo de Ensino)

Uma coisa que a gente já solicitou várias vezes, várias vezes, é que tenha pontos, canais de comunicação formalmente instituídos entre equipe pedagógica e escola. E não tem. Antigamente a gente tinha. (Pedagoga da Unidade de Internação)

  • Desconhecimento, pelas famílias dos estudantes, do trabalho desenvolvido no e pelo Núcleo de Ensino, contrariando o estabelecido legalmente quanto à necessidade de participação ativa da família e da comunidade na experiência socioeducativa. Depoimento informal proferido por uma mãe assegurou existirem familiares que sequer tinham ciência da existência de uma escola dentro da Unidade de Internação.
  • Predomínio de uma avaliação condescendente com o intuito de compensar os estudantes pela situação de clausura em que se encontravam, fortemente descolada do processo de ensino-aprendizagem e, em consequência, distanciada da prática avaliativa formativa defendida nos documentos orientadores do trabalho desenvolvido nas escolas da rede pública.

Tem praticamente… tem aluno que não faz nada. Professor pega e mete um 10. Ganha nota. Eu nunca vi ninguém reprovar em cadeia. Eu não sei explicar porquê. (estudante)

  • Avaliação centrada no professor em decorrência de descrédito quanto às condições dos estudantes para se autoavaliarem e aceita com naturalidade pelos estudantes, constituindo obstáculo a um ensino guiado pelo objetivo de promover a autonomia, conforme defendido nas diretrizes que tratam da avaliação.

Avaliação é um conceito de todos… um conceito do outro que tá acima a ter um conceito sobre nós que tá aqui embaixo. Por quem está acima dentro do estabelecido pela legislação. (estudante)

Os diferentes problemas que incidem sobre o trabalho presencial desenvolvido junto aos socioeducandos, associados às adversidades de uma pandemia, e à escassa atenção dada pela mídia e por grande parte dos gestores e estudiosos da educação, à escolarização desses adolescentes e jovens, acentuam as preocupações quanto ao modo como tem sido organizado e desenvolvido o trabalho pedagógico nos e pelos Núcleos de Ensino. Estaria sendo oferecida aos estudantes que ora se encontram em cumprimento de medida socioeducativa, uma educação escolar pautada pelo compromisso político de assegurar-lhes o inalienável e legítimo direito de aprender?

Referência

GOVERNO DO DISTRITO FEDERAL (GDF). Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal. Secretaria de Estado de Justiça e Cidadania do Distrito Federal. Plano Pedagógico para realização de atividades não presenciais ou híbridas nos Núcleos de Ensino das Unidades De Internação Socioeducativas. Brasília-DF, 2020.

SOARES, Enílvia Rocha Morato. Avaliação e socioeducação: desafios e perspectivas na escolarização de jovens em conflito com a lei. Curitiba: Apris, 2020.


[1] Nome dado às escolas onde estudam os adolescentes e jovens que se encontram em cumprimento de medida socioeducativa.

[2] A fim de impedir a identificação do adolescente a quem se atribua autoria por ato infracional, o que inclui a sua documentação escolar, os socioeducandos do DF são, oficialmente, matriculados em escolas regulares da rede pública de ensino do Distrito Federal, denominadas escolas vinculantes.